Ao te ver, chaleira preta,
carcomida, encascurrada,
esquecida, abandonada
junto aos trastes, no galpão,
num instante brota a lembrança
da minha feliz infância,
no meu querido rincão.
Em pensamento te avisto
enganchada na corrente,
pendurada junto à trempe,
chiando sobre o tição,
sempre cheia de água quente,
servindo nossa gente
na roda de chimarrão.
Entreverada no borralho
com caldeirão e panela,
entre espetos de costela,
batata-doce e pinhão,
lambuzada de graxa,
impregnada de fumaça,
envernizada de carvão.
No seu formato bojudo,
de bico longo envergado,
cabo firme remanchado,
para aguentar o repuxo:
a quentura dos braseiros,
nos fogões galponeiros
dos ranchos simples, sem luxo.
Rude utensÃlio campeiro
de ferro bruto fundido,
forjado no tempo antigo,
nos idos da escravidão;
que traz entranhada na estampa
a hospitalidade do pampa,
do povo do meu rincão.
Quantas vezes viajastes
enfurnada em bruacas,
ouvindo tropel de patas,
duetando com as tralhas,
sacolejando nos cargueiros,
entre aboios de tropeiros
e rangidos de cangalhas.
Nos pousos das comitivas,
nos ranchos abandonados,
nos fogões improvisados,
com pedaços de cupim,
sovando chapas e grelhas,
chamuscada de centelhas
de brasas de guamirim.
Te recordo, chaleira preta,
bordada de picumã,
no aconchego das manhãs,
nas mãos do cozinheiro
preparando, com carinho,
um café forte, quentinho,
no velho estilo campeiro.
Regando a cuia morena,
de topete levantado,
de mate-amargo cevado,
num ato de comunhão;
nos dias frios, de geada,
na tertúlia com a peonada,
ao pé do fogo de chão.
Lendária chaleira preta,
relÃquia de estimação,
rainha da tradição
que o tempo não deu fim;
herança dos ancestrais,
dos avôs de meus pais,
que guardo dentro de mim!