|
|
 |
17/01/2012
09:19:33 |
DESACERTOS ENTRE FLORÊNCIO PALA-VÉIA E MANECO GADELHA! |
............................................................................ |
DESACERTOS E DESCONFORMES ENTRE FLORÊNCIO PALA-VÉIA E MANECO GADELHA

Os dias, para os campeiros, sempre nascem com as suas tarcas lotadas de afazeres. Às vezes, a noite se vai despacito fazendo fidalgos galanteios para a lua, atrasando o sarandeio da barra encarnada da saia do céu, que até parece que o dia “estragou”, de tanta demora pra aparecer. Mas, o vivente já está de pé e com o mate lavado de tantas cuias sorvidas, esperando a cancela da manhã escancarar para se entregar no que a “obrigação” lhe chama. E assim, as coisas tomam rumo, um dia depois do outro. É deste jeito que muitos tauras teatinos, avulsos no seu viver, vão se despachando na lida pesada, muitas vezes sem ninguém para prosear, a não ser ficar ralhando com a cuscada alarife, que se intrometem onde não são chamados e metem o focinho nos lugares mais impróprios. Mas nem tudo é judiaria. Também há momentos para os “serviços leves”, quando o taita vai dar uma volteada no bolicho do lugar, a pretexto de encher o vazio das ideias, ouvir “brejeiradas” dos lacaios, algumas novidades velhas, e também a conversa séria dos mais antigos. Bem inventados os bolichos de campanha, que suprem a gentama de “secos e molhados” e são uma continuidade da escola de politização dos gaúchos, cujos ensinamentos principiam nos galpões. Lugar profano, poderia até ser sagrado pela frequência religiosa da chiruzada e pela louvação que se faz aos santos em cada copo de “azulzinha” servida no “altar” do bolicho. E é num destes locais de sadia convivência da gauchada, onde se ouvem os tabeliões orais do tempo – os tais contadores de história - o palco dos acontecimentos que ora serão narrados. A época... imprecisa para se dizer em números miúdos, mas sabe-se que foi depois das tropelias entre o Flores da Cunha e o Honório Lemes. A região... nos campos de cima da serra. O lugar... no bolicho sortido do Fagundes. Os personagens principais... os velhos trabuzanas Florêncio Pala-véia e o Maneco Gadelha. Bueno, introito encerrado, certa feita, o bolicho do Fagundes estava lotado de gente grande. Era um verdadeiro “rendevú”, num falatório medonho de dar inveja à convenção de tirivas, e o bolicheiro, batendo tamanco de lá pra cá, numa ligeireza de lagartixa em parede, suando mais que tampa de chaleira pra atender a freguesia. Malas de garupa e pessuelos cheios de fiambres, cortes de fazendas, “querosena” e miudezas, a peonada foi se aquietando, bebendo um trago – ou pra “lavar o pescoço por dentro” ou como medida profilática para os vermes - e espichando o ouvido para ouvir alguma conversa de fundamento. Com a gaveta forrada de pelegas graúdas, o Fagundes estava faceiro como cachaço solto no paiol de milho. Tudo estava direito como cola de peludo e, pra arrematar, faltava uma charla pra entreter os torenas. Então o bolicheiro coçou o caco da cabeça e intimou o Maneco Gadelha a contar um de seus causos: - Ôh, Maneco... mas que tal nos contar um causo? De preferencialmente... “argum” que tenha peleia! Espojado numa tulha de açúcar amarelo, com as pernas cruzadas balançando uma das chinelas de couro, solitário como botão de presilha, o Maneco Gadelha esfregou o queixo entordilhado e tirou o “baio” do canto da boca. Com a ponta dos dedos sacou a brasa do palheiro e jogou da porta pra fora, recolocando-o atrás da orelha. Depois de uns pares de segundos mirando pra fora do bolicho - como cobra hipnotizando um ratão do banhado - ele limpou o picumã da garganta e respondeu: - Pois então... lhes conto! Já que o assunto é peleia, então eu digo e atesto que todos os entreveiros que os bicos de pena fizeram ofício e também aqueles que vieram saltando de memória em memória até dia-hoje, tiveram o seu lado “bão” e o seu lado ruim. - Êpa, êpa... como é que uma peleia pode ter “lado bão”, “seu” Maneco? - perguntou um picador de fumo que ajeitava o “macaio” na calha de uma palha de milho. - Pooode! - respondeu o Maneco Gadelha numa entonação bem açoriana. Por um instante, o Maneco sofrenou a prosa e com a cabeça baixa, levantou apenas os olhos sob a aba do chapéu de pelo de lebre e bombeou pro outro lado do bolicho, onde estava o seu desafeto Florêncio Pala-véia, sentado numa cadeira de palha trançada. Meio pesado como gato capão, envergando uma pilcha a capricho e um pala recuado para as costas, mostrando a baeta vermelha do forro, encontrava-se ali o Palavéia, com os ouvidos do tamanho de uma flor copo de leite. E seguiu o Maneco: - Explico: o “bão” das peleias é que elas têm a serventia das curucacas que limpam a “podridão” dos campos, e levam embora essa indiada que não se garante e outros trastes que a natureza num cochilo deixou “vir a furo”... gente como o Pala-véia aí... Se aquele dito era um pedido de silêncio, então quase que se fez por completo se não fosse o ronco de tripas que se ouviu vindo de alguns chirús, temerosos do arremate que poderia vir daquela provocação. Ora, cavalo de campo não come pasto cortado e nem bebe água em balde de folha, então, de chofre, o Florêncio Pala-véia se pronunciou: - Pois então “escuite” seu impostor, o lado ruim das peleias é quando o cheiro do enxofre do cartuchame disparado supera o relampear das folhas de ferro branco. Tiroteio em peleia impede de se reconhecer a valentia dos cupinudos. Coragem se prova manejando um cabo de chifre na mão de semear e não martelando espoleta. Mas, nos entretantos, deixa a morte muito desenchavida por ter que levar também uma porção de calaveiras, covardes e assustados... gente tal qual o teu tipo, Gadelha! Quem não gosta de barulho que não amarre porongo nos tentos! A provocação do Maneco foi coisa de deixar todos mais assustados que pulga em dia de tosa: os cascasgrossas saltaram de vereda dos seus tronos como berne espremido e se enveredaram um na direção do outro. E logo, a indiada ficou entreverada como carne pra linguiça segurando os malevas, num empurra-empurra medonho. Aquilo foi um esparramo de “teres e haveres” pelo chão, que até um urinol esmaltado despencou das prateleiras. Felizmente os manotaços foram curtos como coice de porco e ninguém se feriu. Logo, os dois foram se acalmando tal qual animal chucro conformado no palanque esperando o amadrinhador “fazer a orelha”. Tentaram tirar o Pala-véia pra fora pra evitar mal maior, mas ele se firmou nos machinhos como mula empacadeira, e ali ficou. Dois tigres não moram no mesmo mato. No entanto, houve um tempo em que os dois tauras comiam feijão mexido com toucinho na mesma frigideira – eram lascas do mesmo pau. Maneco Gadelha, cuja melena englostorada caia nos ombros ensebando o casaco, e o Pala-véia, que não tirava o seu palinha azul nem para os assuntos que a natureza não pode adiar, firmaram amizade quando ambos serviram num Regimento de Cavalaria na fronteira. Por saberem “acolherar” as letras e destrinchá-las numa leitura de um “forgo” só, foram promovidos a cabo. Findo o tempo de caserna, ajojaram os “soldos” economizados e compraram alguns acres de terra, que em pouco tempo ficou povoadita de gado. Parceiros pra qualquer ajuste, os dois formavam uma perfeita junta pra canga. Certa feita, num fandango familiar, os dois estavam de pescoço de comício, procurando alguma pinguancha avulsa “pra mode” chacoalhar os quartos numa rancheirita valseada, ao estilo da fronteira, e logo viram duas de pelagem bugia de mãos dadas num canto da sala. Uma delas era fachudaça, daquelas de se apresentar pra mãe da gente, e a outra... daquelas de deixar só dentro de casa, que nem pantufa de lã – feia uma barbaridade! Bueno, alguém seria “premiado” pra dançar com a caficha e o jeito era decidir no jogo de dados. Foram até o balcão e pediram as “pedras” para o bolicheiro e sobre a superfície lisa jogaram a sorte: o Pala-véia foi destinado a dançar com a feia. Mas, quando chegaram à frente das prendas, o Pala-véia mais que depressa convidou a mais bonita pra sala e deixou o companheiro com a outra prenda, descumprindo o tratado. Quem ordenha, bebe o apojo. Maneco só pode morder o freio, pois a feiosa se agarrou no seu pescoço, sem tempo de um giro e saudação, e já saíram num puladinho bem litorâneo. De vez em quando o Gadelha mudava pro passo serrano, pra ver se a prenda cansava, outras vezes, dava uma testavilhada pra ver se ela desistia, mas não surtia efeito. O brabo era ouvir as piadas dos guampas-tortas encostados nos cantos: “Tá embruxado, vivente?”... “Tá cumprindo alguma promessa, Maneco?”... “É peleia? Seráque ele quer que apartemos?”... e outras expressões cujos adjetivos não se convém relatar. Ora, quem já foi milico absorve isso como sacrifício pela pátria. E tudo ficou calmo como água de poço, só esperando o laçaço do balde. Afinal, aquelas prendas não eram pra casar. Findo o baile, os dois continuaram conversando como se nada tivesse acontecido. Mas, nesta empreitada, o Maneco conheceu uma fraqueza do amigo – o de gavionar - e não adianta, gato está pra comer bofe tanto quanto guaxo procura a teta e pato, a lagoa. E aquele acontecido ficou na soga do pensamento dando tironaços como lobo guará em couro de vaca morta e algum dia ele iria cobrar o caiporismo do Pala-véia. A argola é quem sempre chega primeiro. Então, se ajeitava o momento do Gadelha tirar a desforra. Mesmo tendo terminado os confrontos entre a turma do Borges de Medeiros e Assis Brasil, do Flores e Honório Lemes, ainda haviam piquetes de chimangos que andavam pelos corredores dando laço nos maragatos e estes, quando podiam, retribuíam o “calor do couro” recebido. Em cima da serra, isto era cena comum. Às vezes, a homarada ficava escondida no mato por dias até passar o perigo. E foi num dia como qualquer outro que os dois amigos foram surpreendidos pelo piquete dos chimangos que se aproximava a galope, dando tiros de 44 pra cima. Tarde para emulitarse, imediatamente o Maneco e o Pala-véia sacaram dos lenços encarnados do pescoço e jogaram fora para não serem identificados como partidários dos libertadores. Era chegado o momento do Maneco se vingar. Se fazendo de velhaco como quero-quero choco, ao invés de jogar o lenço fora, ele rapidamente enfiou o lenço por dentro da argola do laço do Pala-véia. E foi só os chimangos notarem o lenço encarnado abanando as pontas na anca do animal do Pala-véia, a soitera estralou no sem lombo. O Maneco não saiu ileso, pois também levou uma lambada de mango nas costelas, mas foi liberado. E o Pala-véia? Apanhou que nem boi na roça. E o que é bom se termina, dizia um velho ditado. Desconformes deram cria a desacertos e dali em diante, a intriga fez roçado: enfarados um com o outro, dividiram as terras, a criação e levantaram alambrados. Cada um construiu um rancho perto da cerca pra um ficar de olho no outro, com o receio de que ela pudesse caminhar de madrugada. E verdade seja dita: mesmo vivendo em litúrgicos desacertos, um sempre acusando o outro pelo sumiço de criação e outros desconformes, Florêncio Pala-véia e o Maneco Gadelha nunca deixaram de frequentar, juntos, o bolicho do Fagundes. Nos sábados, de manhã bem cedo, o Gadelha encilhava a sua égua ruana e o Pala-véia o seu doradilho estrelado, e seguiam batendo cascos, cada um por dentro do seu campo, até chegarem às cancelas do potreiro do Fagundes. Chegavam juntos à frente do bolicho, apeiavam ao mesmo tempo e davam uma volta de rédeas nos amarradores de cavalos e, sem um olhar para o outro, ali entravam, cada um por uma porta. Depois de um “buenas”, cada qual procurava o seu trono: o Gadelha ia para a tulha e o Pala-véia para a cadeira empalhada. Mas, voltando ao bochincho já controlado e os cogotudos, azedos como figo brabo, acomodados em seus lugares cativos, uma voz fininha se fez ouvir de um canto do bolicho. Todos se voltaram pra direção daquele trá-lá-lá mirim e lá estava, desguaritado numa cadeira assistindo ao berzabum, um piazito delgado como pulga de tapera, descalço, com a bombacha a meia-canela, limpando o ranho das ventas no comprido do braço. Na qualidade de patrão do recinto, o Fagundes intimou o piá da sua presença naquele local próprio pra gente com cabelo no fungador: - Tio Maneco.... Tio Florêncio..., eu tô aqui faz hora de ter limpado três vezes o mangueirão lá da fazenda, que até esqueci o que os peão me pediram pra levar daqui do bolicho. Certo que vão me chuviscar o lombo de relho, mas eu tava esperando ouvir um causo de peleia, e só vejo “discutição”! Meu padrinho Alípio sempre fala que os causos de vosmecês são os melhor que já se ouviu, mas agora tenho que chispar pro rancho... sem ouvir causo nenhum. - assim respondeu o piá sem dar seca pro bolicheiro. Maneco Gadelha e o Pala-véia se olharam com cara de comadre esquecida do testamento e tentaram remendar o acontecido, tenteando uma conversa civilizada: - Pois é Pala-véia, quem mete cavalo em passo cheio, está sujeito a nadar. - Tanto quanto ginete que não se apruma nos bastos, descamba pro chão. - É verdade, Pala-véia. E por causa da pressa, a mosca nasceu sem osso. - Mas a pressa tem fundamento, tanto que gado lerdo toma água suja. - E bosteada também. Mas não se apressa o passo pra roubar mulher de amigo. - Ora, mulher, cachaça e bolacha, em qualquer lugar se acha. - Mas amigos, não. Eles vêm e vão, e inimigos se acumulam a ponto de encher mangueirões. E amizade, não é que nem alpargata que não tem lado certo. - Mas tu tá zangado comigo, Maneco? - Zangado é o capeta que bebeu água-benta. E por mais que se cuide, é o boi manso que arromba a cerca. E a melhor espiga sempre termina na boca do pior porco. - Acauso tu tá falando da bonitinha do baile? Pala-véia, enfrene a língua! O Fagundes interveio e pediu calma aos topetudos. Naquelas alturas, o jeito era colocar a cola no lombo e priscar dali. Depois de um “adeus”, os dois montaram nos seus fletes e saíram socando canjica. Passado uns pares de minutos, o Maneco não enxergou mais o Pala-véia. Então se virou para trás, e lá estava o doradilho parado com as rédeas soltas. Fez cara-volta e quando se aproximou da cerca, lá estava o Pala-véia caído e imóvel. Num upa, apeou da montaria, pulou a cerca deixando as chinelas espalhadas e sem perguntório, já foi segurando o companheiro pelas costas, tentando levantá-lo. Então, ele gemeu: - Me deixa morrer aqui, Maneco, pois não tenho mais ninguém por mim. - Como não tem mais ninguém por ti? E eu? - respondeu o Maneco. - Nossa amizade, meu amigo, está bichada como oitão de tapera... - Deixa deste barbarismo, Pala-véia! Vamos palanquear estas intrigas e retomar a nossa amizade. Quem é o Maneco Gadelha sem o Florêncio Pala-véia? Mas o que houve contigo, vivente? Deixa eu te aprumar que já te carrego pro médico lá da Vila! - Acho que desconjuntei o espinhaço. O doradilho, desde cedo, já saiu escarceando. Agora, passarinhou perto daquele tacuru, e me pinchou pro chão. - O que não é parecido com o dono é roubado. Mas aguenta, companheiro, vou ver se consigo te virar. O Maneco, então, foi sentando o companheiro devagarito e logo viu que o pala dele tinha se enrolado no cabo grande da adaga atravessada nas costas. Por isso, o Pala-véia não conseguia se mexer. Tava que nem recém nascido enfaixado. - Tô mui mal... tô entrevado.... e acho que logo vou alumiar a cola nas macegas. - disse o Pala-véia, num sentimento de abandono tal qual rebenque velho. - Ora, seu manhoso. Tu tá enredado no pala e nem se pisou. Levanta seu fazedor de fita. Ora essa, eu aqui preocupado com esse choramingador... Sem graça, como vaca encilhada, o Pala-véia foi levantando pranito, agarrando-se no loro do estribo do doradilho. Depois, deu uns passos ainda meio lunanco. Com as mãos apoiando os rins, se virou para o Maneco e, depois de um suspiro profundo, ele assuntou: - Foi às devas aquela tua conversa, Maneco, de que ainda somos amigos? Se assim for e como não quebrei o espinhaço, vamos lá pro meu rancho e vamos carnear um borrego pra assar... - Ora seu calaveira – respondeu o Maneco - me dá vontade de te retovar de brasino... mas já que tu tá me invitando pra comer um borrego... não enjeito e se “bamo”! O poder medicamentoso de um churrasco de ovelha pingando a graxa na brasa é tão poderoso que faz curar qualquer desacerto e desconforme entre os viventes! |
|
............................................................................ |
|
|
|
Autor:
Juarez Nunes da Silva |
|
Causo enviado Por:
Juarez Nunes da Silva - Caxias do Sul / RS |
|
Observações:
Conto premiado em 1º lugar no 45º Concurso Anual Literário de Caxias do Sul - 2011 - na modalidade “Contos”, integrante da obra do autor "No campo dos contos... Contos de campo", num total de 19 contos, sendo 17 premiados. Pedidos via correio eletrônico juanunes@uol.com.br , ao preço de R$ 36,00, incluída a postagem.
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|