O RINCÃO DOS ESQUECIDOS
de André Moab Garcia
VII – O ESTRUPÍCIO E A VOLTA DO ESTROPIADO!

Alexandre Zacchia, no personagem Capataz,
da novela Alma Gêmea, da TV Globo
*imagem modificada
Quando acordei, o sol brilhava forte e o dia não era dos mais frios, de modo que dava até pra sentir um calorzinho gostoso vindo da terra, ainda que minhas roupas estivessem um pouco molhadas. Respirei fundo, pra modo de me sentir vivo, e senti um cheiro estranho, que me invadia as narinas. Examinei o terreno à minha volta e sem demora descobri do onde ele vinha: pois não é que eu tinha me mijado todo!
Aquilo já começava a me incomodar. E eu prometi a mim mesmo que assim que fosse possível iria procurar uma rezadeira, pra dar jeito nas minhas tripas. Mas a Providência manda de tudo, na justa medida. E se pelas minhas contas a carga de castigos era bem maior que o número de pecados, no caso do Mão-pelada se dava o contrário, já que o bicho andava, assim, de contas vencidas.

E não foi por outra que alguém lá de cima decerto se aporreou ao ver tanta ruindade num só homem, e examinando melhor o livro dos feitos de cada um achou que já era a hora de socar o freio naquela boca baguala, mandando-lhe a sua cota de desgraça. Não vê que quando o capataz ia já chegando na boca do galpão cai-lhe, também, um raio pelo costado, empurrando para dentro, num sofrenaço abarbarado, homem e animal, rolando um por sobre o outro, numa cena medonha.
Em meio à confusão de raio com trovoada, chuva, cavalo e gente, assustou-se a peonada que mateava, distraída, de maneira que nenhum se atreveu a chegar perto daquilo. Aliás, um bem que tentou. Foi o tal do Chico Piolho, peão franzino e adulão, a quem alguns chamavam de piolho-de-saco, e que segundo alguns seria filho do capataz com uma mulher da vida. Mas disso se fala depois. Por enquanto, só posso dizer que esse homem iria me causar muita tristeza, no futuro...
Aconteceu que na ânsia de livrar o capataz do perigo, se descuidou o adulão. E num revolteio mais abarbarado levou uma cabeçada do matungo, que atirou o magricela por sobre o braseiro, esparramando brasa e cambonas, que quase botou fogo no galpão. Acabou ficando sentado bem sobre um tronco grosso, usado como pai-de-fogo, e como resultado queimou feio o couro daquelas partes; de sorte que se dependesse daquilo para ganhar a vida, morreria pobre e miserável!

Contaram-me, depois, que o mandado foi tão poderoso que de um cusco que tinha ido ao encontro do capataz, lamber-lhe as botas, só se encontrou a cabeça e a cola; um outro cusco fugiu, num ganido campo a fora, e dele nunca mais ninguém soube; teve ainda um outro que ficou duro com o susto e só voltou a se mexer três dias depois. Ainda assim bastava um peidar por perto para que o animal se urinasse todo. Já a peonada, mais acostumada a repuxo brabo, resolveu esperar baixar a poeira dentro do galpão para ver do que se tratava; e, num gesto de defesa, buscou guarida junto do oitão, e por lá se amontoou. Teve um - já meio borracho, ainda na hora do café - que teria gritado “valha-me Santo Onofre, São José, São Benedito e todo o resto, acolherado!”, achando que era mesmo o fim do mundo.
Passado algum tempo, depois que a coisa acalmou, fez-se um silêncio fúnebre, daqueles em que se sente a respiração pesarosa dos presentes. Muitos chegaram a pensar que fosse eu quem tinha se estropiado, por força de alguma maldade do capataz. Mas quando perceberam de quem se tratava ficaram em dúvida se deviam socorrer ou deixar que morresse; o que deixava claro que eu não era o único que não morria de amores por ele. Primeiro resolveram socorrer o pingo mouro, que era animal de muita serventia, mas nada puderam fazer, porque o animal se maneou numa cambota e acabou quebrando o pescoço. Já o Mão-pelada, levando-se em conta a anarquia, pode se dizer que até nem sofreu nada. A não ser por uma quebradura na pata direita, aonde, no meio da canela, relampeava quase um palmo de osso pra fora das carnes. De resto foi só um olho arruinado por um tição de brasa, que tinha ficado grudado, cozinhando a carne da vista. Também entram na conta quatro ou cinco dentes de menos e um lote de arranhões distribuídos pelo corpo, além de um tanto de queimaduras; coisa pouca, no dizer da fronteira!
O último a ser socorrido foi o tal de Chico Piolho, que ninguém gostava mesmo dele. E que, conforme já dito, só assou a picanha e nada mais. Em cima de uma carroça velha acomodaram o corpo do capataz e partiram com ele para Bagé, chacoalhando por quatro horas até a Santa Casa, enquanto que o Chico Piolho ficou sob os cuidados do velho Anastácio, que lhe aplicou um emplastro de ervas fedorentas sobre a bunda, recomendando repouso pelo tempo que fosse possível.
Talvez alguém, lendo este meu relato, tenha se perguntado: “mas e tu, chê?” Eu? Fazer o quê, se ninguém lembrou de mim; apaguei o candeeiro, quando ainda voava pelo ar, e depois fiquei por lá mesmo, deitado no campo, todo mijado e tomando chuva, por todo aquele dia e durante parte da noite, até que o dia seguinte amanheceu, com o sol forte, e me fez acordar.
Foi preciso que Juliana desse uns berros e ameaçasse matar uns dois ou três, durante o sono, para que se dispusessem a sair em minha procura. Quando me encontraram eu já rastejava pelo campo, buscando o rumo das casas; e só então é que eu fiquei sabendo que durante umas duas horas eu tinha me arrastado no sentido contrário, e que se tivesse ficado quieto onde estava já teriam me encontrado há mais tempo. Levaram-me para o galpão e despejaram o meu corpo sobre os pelegos, um conforto que eu nem esperava, e por lá me deixaram.
Mas a noite foi se achegando e eu comecei a ter febre, de modo que o meu corpo tinha esquentado tanto que dava até pra aquecer água pra o mate: bastava encostar uma cambona no meu sovaco. No clarear do outro dia, depois de eu ter passado toda a noite em delírios de febre e sem deixar ninguém dormir direito, acharam por bem consultar a dona Júlia. Aliás, que ela nem acompanhou o marido na ida até o hospital, dizendo que nem era o caso e que aquilo não era homem de morrer por pouca coisa. Disseram que ninguém queria arriscar o pescoço me levando pra a Santa Casa, porque a ordem era para que eu morresse; e que só foram me salvar, porque a filha dela assim insistiu.

Lembro-me, ainda, que me levaram para um quartinho, onde uma lareira fazia com que o calor se espalhasse acolhedor. Lembro, também, que me deitaram numa cama de verdade, coisa que eu já nem lembrava mais o gosto, e que alguém me cobriu com um acolchoado, que de tão pesado quase não me deixava respirar. Não lembro de ter tirado a roupa e nem de ter tomado banho, embora eu lembre de ter chegado já limpo na cama. Passei ainda mais dois dias delirando e dizendo bobagens, vez que outra dando uns gritos, num febrão abarbarado de fazer a cama tremer junto, que não tinha chá de ervas que desse jeito. Eu soube de algumas coisas desses dias porque me contaram. Mas, de uma coisa eu nunca esqueci, e até hoje não se passou um dia sem que eu a lembrasse: de que na terceira noite dona Júlia me examinou, antes de se recolher; e, como eu estivesse muito mal, chamou Juliana para lhe dizer qualquer coisa. O que ela tinha pra dizer para a filha era que o meu caso era de não se ter esperanças, pois a febre não baixava e o melhor seria que ela se preparasse para o pior. E foi naquela noite, quando nenhuma coberta e nem todo o fogo do mundo conseguia me aquecer, que um anjo trigueiro, de cabelos longos e olhos mui azuis, se achegou sob as cobertas, me abraçando com tristeza; e ao deixar cair uma lágrima no meu rosto, me devolveu a vida!
Durante uma semana inteira me enfiaram, goela abaixo, todo o tipo de chá, que a medicina campeira recomendava para casos como aquele, sem falar que andaram fazendo algumas experiências com uma ou outra erva que tinham ouvido dizer que era boa, mas que ao certo ninguém sabia e nem sabiam dizer quem já tinha tomado. Canja de galinha, então, nem lhes conto: manhã, tarde e noite, sem falhar; de modo que eu parecia mais uma bugra parida, em resguardo de gêmeos, sendo que ao ficar bom tinha levado ao arraso o galinheiro da estância. Teve dias de a febre me cozinhar os miolos, coisa que me fazia ter cada sonho mais esquisito que o outro.

De uma feita sonhei que tinha penas pelo corpo e me dava uma coceira na sambiqueira, que me fez acordar achando que ia botar um ovo; de outra vez sonhei que o galo dono do terreiro cismava que eu era coisa dele e me perseguia pelo galinheiro, disposto mesmo a casar comigo. Para completar, Juliana teimava comigo que numa madrugada podia jurar que tinha me escutado cantar feito galo e, quando foi dar fé do que se passava, me encontrou sentado na cama cacarejando!
Acharam melhor cancelar a dieta de canja de galinha e voltar à bóia normal, antes que eu ficasse bom de uma coisa e ruim de outra. Aconteceu, então, que passados quinze dias desde o mandado, Juliana, como de costume, aninhou-se no meu costado, de modo a me emprestar o calor, o que a bem da verdade já nem era mais necessário, e acabou me provocando uma febre que não era mais de doença, mas de fome de vida. Aos poucos começamos a responder ao chamamento inconsciente, sentindo vontade um de fazer parte do outro; e o que era inevitável, deu-se por si mesmo. Por mais de uma semana repetiu-se o casamento, acompanhado de promessas de amor e planos de um dia ser feliz, já que o resto não interessava.
Passados aquele lote de dias, um que outro, de vez em quando, perguntava por mim, aproveitando também a oportunidade de travar algum diálogo com as mulheres, coisa que nem se pensava quando o capataz estava presente.
- Ainda anda mal o guri, dona Júlia? - indagava um.
- Morre ou não morre? - queria saber outro.
- Acaso precise de qualquer coisa, é só pedir! - se ofereciam, sabe-se lá com que intenções.
Aliás, é bom que se diga, confirmando o que depois me falaria dela o João Vieira: dona Júlia era mesmo uma pessoa muito especial, gentil, educada e sempre preocupada com a filha e comigo. A vida ao lado do Mão-pelada tinha lhe deixado muitas marcas, mas ainda era possível enxergar debaixo daquele ar envelhecido e triste a beleza da qual me falava o João Vieira. Dona Júlia tinha o mesmo tom de pele e os mesmos cabelos negros da filha; mas, os olhos azuis Juliana deve ter herdado de algum outro ancestral, assim como o cacheado dos cabelos. De resto, voz, modos, andar, sorrir, enfim, de tudo eram iguais. Na verdade, dona Júlia sempre soube que o que me fez melhorar foram as visitas da filha, mas nunca fez caso ou disse palavra de censura, quem sabe devido ao que tinha se passado com a outra filha; talvez ela tivesse esperança de um futuro com menos sofrimento para Juliana.
Uma noite, depois de a peonada já ter se encerrado nos seus quartos, fizemos nossa pequena roda de chimarrão, os três juntos ao fogão à lenha, cada qual entretido com os seus pensamentos, quando dona Júlia puxou conversa:
- Tá melhor? - perguntou ela, não querendo saber do meu estado de saúde, mas se eu já me achava pronto para voltar para o meu lugar.
- Graças à senhora, que me cuidou como se fosse minha mãe; ainda que eu não saiba o que é isso, mas não pode ser melhor do que a senhora foi.
- Pois bem, fico feliz com o elogio. Mas fiz o que fiz porque assim também fazia minha filha feliz; e eu até simpatizo contigo, e não acredito que seja uma pessoa má; mas acho que é hora de vocês pensarem na vida - disse ela, antes de interromper a conversa e servir um mate para a filha. Ficamos em silêncio, esperando que ela terminasse de dizer o que tinha em mente.
- Se o Ernesto volta sem aviso e te encontra morando aqui dentro, vamos acabar as duas te fazendo companhia no outro mundo, que não pode ser pior do que este, mas isso não é o caso. O que interessa é que vocês têm uma vida pra viver e a Santa Helena não é lugar para isso. Se a minha opinião conta alguma coisa, eu acho que deveriam ir os dois embora daqui. Peçam ajuda ao João Vieira, que é um homem bom; e eu tenho certeza que vai fazer por vocês tudo o que for preciso. Além disso, lá é o único lugar onde o Ernesto não vai perseguir vocês, porque com o João Vieira ele não se mete, que ele é brabo, mas não é burro.
- Mas, mãezinha - interrompeu Juliana -, eu já disse pra senhora que não vou nunca te deixar sozinha com aquele animal; se a senhora não for junto, eu não arredo o pé daqui!
- Eu tive meu tempo de ir e não quis. Agora, o que me resta é acabar minha vida por aqui. Tu sabes, minha filha, que a mãe anda doente; não demora e vou me encontrar com teu pai, seja lá onde ele se encontre, e vou ter a chance de pedir perdão por ter desrespeitado a memória dele, casando com esse homem...
- De jeito nenhum que a senhora vai ficar sozinha aqui! - eu disse, entrando no assunto. - Se a senhora não for, Juliana também não vai, e muito menos eu sem as duas. Além do mais, pelo que se comenta, o estado do capataz não é dos melhores; e, com sorte, morre. Cheguei a pensar que tivesse dito uma bobagem, afinal, era o marido dela. Mas ela nem levantou a pestana. Então, continuei:
- Se não morre, fica sem serventia. E se antes não me fez correr daqui, que dirá agora! - concluí, com firmeza.
- Quem me dera - disse dona Júlia -, pra o Ernesto ficar sem serventia só morrendo mesmo, porque aquilo enquanto viver vai dar trabalho. Mas eu ainda acho que vocês têm que fugir. Aproveitem o tempo que resta, antes dele voltar, para pensar melhor. Por enquanto, já que não vão embora, vamos combinar umas coisinhas...
Ficou combinado que aquela seria a minha última noite na casa, e que no dia seguinte eu teria que voltar para o galpão. O melhor seria chegar lá com cara de doente, que era pra ninguém pensar que eu tinha sido tratado melhor do que qualquer outro cristão, na mesma situação. É claro que dona Júlia teria que subornar a gauchada com bóia da boa, recomendações no sentido de trabalharem menos e distribuir doses generosas de aguardente, bebida comprada às escondidas com o dinheiro que ela sempre tirava dos bolsos do capataz, quando ele voltava emborrachado das suas visitas aos puteiros da cidade. Dinheiro esse que ela disse que andava guardando para alguma precisão, e que nos daria quando chegasse a hora de irmos embora.
Parecer doente não foi difícil; bastou a noite de despedida com Juliana e a tristeza de ter que me separar dela para que eu chegasse no galpão com cara de quem estava morrendo. Tenho certeza de que eles acreditaram que eu estava mesmo mal. E até que estava, mas era de saudades. Combinamos que tudo voltaria a ser como antes e que não se trocaria palavra na frente de ninguém. Elas voltariam para a proteção das casas e sairiam o menos possível, de modo que a peonada tratasse logo de esquecer da minha estada por lá. Encontro entre nós, só no lajeado de pedra - que era o lugar mais seguro -, na beira da sanga; e sempre aos domingos, quando a peonada estivesse de folga. Ficou acertado que nos dias em que a gauchada estivesse no povo, Juliana deixaria uma janela do quarto aberta, para que ao cair da noite eu pudesse entrar e passar a noite junto dela.
Inverno frio, uma barbaridade! Mas, que ao invés de achar ruim, lhes digo que pouco senti frio, dado uma quebra nas nossas regras; porque, ao contrário do combinado, dormia na cama da morena pelo menos três vezes por semana, já que ninguém se importava mesmo comigo. Passamos aqueles meses sem que houvesse alarde de nenhum tipo, todos vivendo suas vidas sem procurar dar fé da dos outros.

No finzinho de setembro, quando as flores enchiam de colorido os campos, antes cobertos de geada, chegou a notícia de que o capataz chegaria em breve, de volta da capital, para onde ele teve que ser transferido, por causa dos ferimentos. Podia ser que ainda levasse um mês ou dois, mas era certo que voltava. Assim foi dito e assim se passou. Depois do finados, quando alguns achavam que ele não voltaria mais, sem nos dar a chance de comemorar a data cuspindo na cova dele, o morto-vivo deu as caras na estância.
Era perto do meio dia, lembro bem, quando um peão, alertado pelos berros de um bando de quero-queros, esticou o olhar, buscando o motivo; e, com aquele modo de quem é acostumado a enfrentar desgraças como parte da vida, virou-se pra peonada e disse, como quem dá notícia de morte:
- Senhores! Lá vem o bicho!
Digo e repito, que notícia de morte talvez não tivesse causado efeito igual; de pronto, murcharam as orelhas e parou-se de soco a conversa, ficando somente o fogo de chão provocando um barulhinho de água chiando nas cambonas. Obedecendo ao instinto e provando que o animal também pensa com o juízo, tratou a cachorrada de buscar abrigo num cantinho do galpão, deixando solito um tareco rabão, que cismou ser uma boa idéia dar as buenas ao capataz.
Parado, de frente para a entrada do galpão e de costas para a luz do sol, que banhava os campos, projetou a sua sombra maligna, ocupando todo o espaço no interior do recinto, como uma nuvem pesada a cobrir a vida de todos. Na mão direita as rédeas do rosilho, que aguardava paciente, baralhando o freio; e na esquerda o relho, nervoso, batendo contra a bota. Eu me achava num canto, perto da cachorrada, aonde por lei devia ser o meu lugar. E mateando, solito, mirava o bicho com o canto do olho. Foi só o tempo de ter certeza de que sua presença ainda era respeitada, para que ele se sentisse em casa.
